Há algumas coisas que nos acostumamos a não ver. Como, por
exemplo, ao passar por um acidente de trânsito grave, muitos passam ao lado e
mesmo sabendo que tem pessoas feridas, sangrando, com falta de membros, etc.
evitando olhar. Assim como há coisas que lidamos no dia a dia sem nos dar conta
do que é ou como funciona, como os diversos chips e fios do computador, o motor
que faz subir e descer o elevador. Existem outras coisas que fazemos questão de
não conhecer e evitamos ter que lidar com elas, como os trâmites de cartório e
seus diversos documentos, assinaturas, carimbos e burocracia. Há outros
elementos que lidamos e que não conseguimos compreender com clareza e não
paramos para pensar sobre o que ele é e o que representa, como o dinheiro. O
que é o dinheiro? O que faz um papel colorido com um número 10 ter o valor de
R$10,00? Ele representa um valor de uso, um valor de troca, a força de trabalho
ou o tempo gasto para produzir um produto com valor equivalente?
Alguns filósofos chamam este fenômeno de fetichismo,
principalmente os ligados a linha marxista, como Adorno e Horkheimer da Escola
de Frankfurt, Luckács e o próprio Marx. Um escritor inglês chamado China
Mieville levou este conceito ao extremo ao criar uma ficção policial onde duas
cidades ocupam o mesmo espaço geográfico sem interagir uma com a outra, elas
são de países diferentes. Realmente é estranho, eu sei, mas de uma criatividade
estupenda! Imagine que se você mora em uma casa na cidade X e na casa ao lado,
o que seria seu vizinho, tem a casa situada na outra cidade, Y. Vocês obedecem
a leis diferentes, têm outro governo, modos de vestir, de comportamento
distintos e até outra língua. Como não pertencem ao mesmo país não podem se
comunicar e nem ao menos se ver. Para ambos ignorar esta separação é um crime
gravíssimo e para garantir este “distanciamento” são monitorados por um poder
secreto chamado Brecha.
O livro se chama “A cidade & a cidade”, publicado pela
Boitempo Editorial, e já ganhou diversos prêmios mundo a fora pela genialidade
da obra. Além de ser um romance policial que nos prende a atenção do começo ao
fim ele nos promove um exercício de imaginação ao tentar conceber uma relação destas
entre cidades e cidadãos. Nos leva a refletir sobre as coisas que vemos e não
enxergamos, que somos acostumados a não nos envolver, a não entender e não nos
relacionar. Coisas que sabemos que estão lá, mas aprendemos a “desver”.
Imaginem o tanto de coisas que estão por aí e nem sabemos que existem?